A digitalização do comércio tradicional é essencial?

A pandemia mostrou que uma economia de risco, em que a proximidade que liga o comércio tradicional aos seus clientes fica limitada, o formato digital poderá ajudar a sustentar o negócio. Mas dificilmente substituirá o lado humano onde o fator emocional é essencial ao ato de compra

As vendas do comércio eletrónico na Europa atingiram os 636 mil milhões de euros em 2019, o que representa, segundo dados do Relatório Regional de Comércio Eletrónico Europeu 2020, um aumento de 14,2% em relação ao ano anterior. O documento, da responsabilidade do Ecommerce Europe e do EuroCommerce, prevê que a faturação do comércio eletrónico europeu cresça 12,7% durante este ano, chegando aos 717 mil milhões de euros em 2020. Mas salienta que o impacto da pandemia só poderá ser avaliado em definitivo após o final do exercício.

A nível global, o impacto social e económico da pandemia em todo o mundo já acelerou a transformação digital das organizações, que deixou de ser essencialmente um vetor de inovação, para ser também um motor crítico de adaptação à nova realidade de mercado. Isso mesmo foi salientado durante a 9.ª Semana do Empreendedorismo de Lisboa (SEL), dedicada à transformação digital, com curadoria da Galp.

UMA OPORTUNIDADE NOVA

Este ano o evento centrou-se na retoma da economia da cidade, mantendo o foco na sustentabilidade, visto que Lisboa é, em 2020, a Capital Verde Europeia. Numa das conferências online que decorreram no âmbito da SEL, dedicada ao comércio tradicional, Tiago Quaresma, administrador do Grupo O Valor do Tempo, que detém, entre outros, A Brasileira no Chiado, o Museu da Cerveja e a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau, em Lisboa, salientou que há, hoje, “uma oportunidade nova que emerge do contexto da covid-19 para o comércio tradicional e para os produtos portugueses”. Isto, “numa altura em que cresce a importância da origem e da autenticidade dos produtos portugueses e as pessoas se estão a habituar a consumir mais através do digital”. Agora “é preciso usar isso, e fazer chegar mais produtos nacionais a mais gente, através do digital, a partir de Portugal para os quatro cantos do mundo”, acrescentou, defendendo que o formato digital nunca substituirá a forma tradicional de fazer comércio, principalmente por faltar o lado emocional e próximo, que resulta do contacto e envolvimento entre consumidores e comerciantes. Mas Tiago Quaresma considera essencial ter, hoje, plataformas que aumentem a visibilidade das empresas e dos seus produtos para um mercado mais vasto.

Foi o que fez a Associação de Dinamização da Baixa Chiado (ADBC), organização que integra lojas com porta aberta situadas na zona da Baixa e do Chiado da capital. Criou, este ano, a plataforma baixachiadonline.com, onde todos os estabelecimentos estão identificados pelo seu logotipo, o que permite, a cada cliente, entrar, com um click, em cada um deles, ver o que existe na loja e comprar determinado produto.

ONLINE É ESSENCIAL

Foi a reação do comércio tradicional desta zona da capital, face à quebra abrupta do seu negócio devido à pandemia causada pelo novo coronavírus, inicialmente por causa da situação de confinamento devido à pandemia, agora porque não há quase turistas na capital e os portugueses da Área Metropolitana têm evitado idas até à baixa. “A plataforma baixachiadonline.com foi desenvolvida em tempo recorde, tendo iniciado a sua atividade no início de maio de 2020, com enorme sucesso”, diz Vasco de Mello, vice-presidente da Direcção da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina. “Hoje inclui mais de cem lojas virtuais e tem dezenas de milhar de visitantes por dia”, acrescenta.

“Se não estamos online, não existimos”, defendeu, na conferência organizada durante a SEL, Chakall, o mediático chefe de cozinha argentino que possui e dá consultoria em sete restaurantes, a maioria em Lisboa. Salientou também que, a nível da restauração, “é preciso investir tempo e dinheiro nas redes sociais para ter acesso ao público consumidor”. Mas é preciso fazê-lo sempre com um conhecimento muito apurado em relação ao tipo de público que frequenta cada estabelecimento. “Se tiveres uma tasca tradicional, os clientes estarão provavelmente mais no Facebook do que no Instagram”, explicou, salientando também a importância do Tripadvisor para atrair público estrangeiro e do Zomato para o nacional.

“Se não estamos online, não existimos”

Antes da situação atual, os consumidores já utilizavam a internet para fazer prospeção de mercado, usando os meios digitais para reunir mais e melhor conhecimento sobre o que queriam comprar. Pesquisavam os fornecedores do mercado, avaliavam preços e condições da sua concorrência e verificavam quais eram os aspetos positivos e negativos dos produtos e serviços disponíveis. Por fim, liam os comentários de quem estava a fazer prospeção, ou já tinha adquirido, para tomar a decisão final de compra.

O TOQUE HUMANO É INSUBSTITUÍVEL

Presente na conferência organizada no âmbito da SEL, Sofia Fernandes, diretora executiva do Grupo Pestana para a América do Norte e do Sul, maior grupo hoteleiro português, com cerca de 100 unidades em todo o mundo explicou, por seu turno, que a via digital foi essencial à empresa para manter o contacto com os seus clientes, “que estavam em casa mas queriam voltar a pensar em coisas boas, como estar num hotel onde passaram bons momentos”. Acrescentou que isso foi feito “através das redes sociais, para ir alimentando o espírito positivo das pessoas”. Com a abertura da economia, “os meios digitais foram também a ser usados para passar informação e comunicar as novidades”. Em paralelo, foi desenvolvida uma aplicação que permite aos clientes não terem interações pessoais quando visitam hoje um hotel da cadeia. Mas também podem fazer tudo o que querem e precisam presencialmente. Tal como Tiago Quaresma para o comércio tradicional, Sofia Fernandes considera que o lado humano é essencial ao setor hoteleiro, e que isso nunca será conseguido pela via digital. “A arte de bem receber tem de ter um toque humano, um sorriso do outro lado, as palavras amigas, um ‘bem-vindo’”, defendeu.