Access Lab: trabalhar a inclusão no setor cultural

O cenário da acessibilidade em eventos culturais em Portugal está a mudar, apesar de ainda encontrar muitos desafios. Viver numa sociedade verdadeiramente inclusiva é um compromisso que depende da colaboração de um conjunto de forças governamentais, empresariais e sociedade civil, como é o caso da Access Lab

Promover a acessibilidade de pessoas com deficiência a eventos culturais é uma questão de equidade, de respeito pela diversidade e de inclusão. Apesar de haver uma cada vez maior abertura e sensibilidade na abordagem a este tema, alguma resistência e estereótipos criados pelo capacitismo (discriminação de pessoas com deficiência) lembra-nos que ainda há um longo caminho a percorrer.

Com o Rock in Rio Lisboa na ordem do dia, este foi o mote para uma conversa com Jwana Godinho, da Access Lab, uma startup fundada e liderada por esta especialista em produção de espetáculos que já trabalhava em projetos de impacto social, e por Tiago Fortuna, um apaixonado por música e festivais que fazia assessoria de imprensa e que se desloca, desde sempre, numa cadeira de rodas.

Em 2022, ambos descobriram que tinham uma missão comum e decidiram unir as suas energias para melhorar a acessibilidade de pessoas com deficiência a toda a espécie de eventos ao vivo, além de visar a criação de hábitos de consumo cultural, desportivo e social para essas pessoas, explicando a importância dos recursos disponíveis e promovendo a inclusão.

Catarina Oliveira desloca-se em cadeira de rodas há sete anos e desde aí é uma fonte de inspiração, percorrendo o país com sessões formativas para mudar a narrativa da deficiência e combater o capacitismo. Na imagem, durante a sessão de formação aos colaboradores e promotores Galp que vão ser a cara da companhia nos quatro dias de Rock in Rio Lisboa

Planos 360 e outras iniciativas inclusivas

“Percebemos a importância do empoderamento das pessoas com deficiência e das equipas e da desconstrução da ideia do que é a deficiência. O conhecimento é muito importante e começámos também por fazer ações de formação”, sublinha a responsável, enquanto explica as principais áreas em que a startup atua. Uma delas são os Planos 360 que envolvem a deslocação da pessoa desde casa até ao evento, abrangendo a compra de bilhetes, o transporte, a acessibilidade no local do evento, entre outros, bem como o regresso.

Outros focos são o desenvolvimento de recursos para diferentes tipos de deficiências, incluindo deficiência motora, comunidade surda, deficiência visual e neurodivergência, de que são exemplo as perturbações do espectro do autismo, bem como o desenvolvimento de uma academia com formação e workshops sobre como lidar com pessoas com deficiência, promovendo a representatividade e a desconstrução de estereótipos. Outra área é a de advocacy, através da qual trabalha em políticas públicas, lutando por questões como a integração no orçamento de Estado do IVA Zero no bilhete do acompanhante. Neste percurso de quase dois anos a trabalhar por uma cultura inclusiva são ainda muitos os obstáculos que se apresentam todos os dias, como a resistência do mercado de eventos, o custo elevado por contacto e a necessidade permanente de educar e de desconstruir preconceitos sobre a deficiência.

Desafios que a Access Lab procura superar com o apoio de marcas, os exemplos de sucesso e boas práticas de outros países, a formação contínua das equipas e uma comunicação eficaz. “A comunicação é crucial para mostrar que pessoas com deficiência são uma força económica. É preciso desconstruir, é preciso demonstrar e dar a conhecer. A Access Lab utiliza newsletters e redes sociais para informar tanto a comunidade de pessoas com deficiência quanto o público em geral sobre espaços acessíveis, por exemplo”, refere Jwana Godinho.

Desafios e oportunidades para a acessibilidade

Na Europa, cerca de 15% da população tem algum tipo de deficiência, 80% das quais são invisíveis. Com o envelhecimento demográfico, este número tende a aumentar nos próximos anos, especialmente em incapacidades físicas e visuais. “Na realidade, há uma oportunidade no mercado que está a ser perdida porque não estamos a incluir estas pessoas. É preciso que haja coragem, fundos e equipas motivadas, mas a verdade é que existe uma porcentagem grande da população que não tem acesso aos eventos porque não estão a ser criadas condições suficientes e quem diz eventos diz ao emprego, ao consumo na globalidade. A estas pessoas podemos juntar os acompanhantes, que também consomem, e todos contribuem para dinamizar a economia”, acrescenta ainda a cofundadora da Access Lab que considera necessário haver investimento a demonstrar que pessoas com deficiência também fazem sentido do ponto de vista económico.

A representatividade, ou seja, a participação direta de pessoas com deficiência em todas as esferas da sociedade constitui outro ponto que Jwana considera fulcral para se olharem as questões da deficiência como parte da diversidade e não da solidariedade e combater o capacitismo. “A representatividade é chave”, sublinha, e deve ir “além das cotas; é necessário que as pessoas com deficiência ocupem posições de decisão e de visibilidade, promovendo uma verdadeira inclusão. Isso ajuda a desmistificar preconceitos e a normalizar a diversidade como parte integrante da sociedade”.

“É necessário que as pessoas com deficiência ocupem posições de decisão e de visibilidade, promovendo uma verdadeira inclusão”

Sociedade que, não estando ainda totalmente recetiva à desejada inclusão total, tem sofrido evoluções positivas nesse sentido e Jwana revela-se otimista: “A sociedade vai ter de estar recetiva e acredito sobretudo na nova geração para exigir dos locais de trabalho, dos seus professores, dos seus pais, das suas famílias que se crie este engajamento, até porque quase todos nós vamos ter alguém, um amigo, um familiar, com algum tipo de deficiência ou incapacidade”.

O papel das empresas

Para ajudar a promover esta recetividade e a inclusão propriamente dita, as organizações têm um papel importante quando adotam práticas e políticas proativas diárias, como compreenderem os vários tipos de deficiência e os seus comportamentos, adaptarem as entrevistas, por exemplo com intérprete para candidatos surdos, perceberem as áreas em que cada candidato se sente mais confortável, permitindo, desta forma, uma maior contratação de pessoas com deficiência, e não esquecerem a aposta regular na formação das suas equipas.

A propósito do patrocínio principal do Rock in Rio Lisboa e do envolvimento que a Galp tem com o festival, foi promovida uma formação em parceria com a Access Lab, que fornece conceitos básicos sobre como acolher pessoas com deficiência, sobretudo ao nível da atitude para com elas. Uma ação de cidadania que promove uma abordagem inclusiva no acolhimento ao público que visita o stand Galp e que se transforma em mais uma oportunidade para passar a mensagem.

Jwana Godinho, cofundadora e colíder da Access Lab, parceira da Galp para o Rock in Rio Lisboa, acredita numa sociedade cada vez mais recetiva e empática em relação à pessoa com deficiência

Estas formações têm, como realça Jwana Godinho, “um papel absolutamente fundamental, é um investimento que depois funciona como uma bola de neve. As pessoas com deficiência vão ao festival, vão sentir-se mais bem acolhidas do que noutros eventos e vão dizer ‘é bom estar aqui’, com um efeito que inspira o resto da comunidade. Acredito no poder multiplicador destes pequenos passos”.

O muito que ainda falta fazer

Para combater o capacitismo e promover a inclusão das pessoas com deficiência, a colíder da Access Lab não tem dúvidas de que ainda há muito por fazer neste âmbito. Desde aumentar a representatividade dessas pessoas tanto na política quanto nas empresas não apenas em cargos inferiores, mas também em posições de liderança e de tomada de decisão, à continuação e expansão das políticas públicas, como a implementação de assistentes pessoais que permitam às pessoas com deficiência viverem de forma independente e tomarem decisões autonomamente. No campo da educação e cultura, a responsável destaca o investimento em consultoria e em recursos acessíveis, como livros em braille, audiolivros e ebooks, promovendo a literacia para pessoas com incapacidades visuais, além de ser importante comunicar e divulgar estas políticas, de modo a contribuir para uma sociedade mais informada e inclusiva. Além disso, é necessário realizar mais eventos culturais acessíveis, incluindo em língua gestual portuguesa ou com audiodescrição, e investir na adaptação de espaços físicos, como teatros municipais e históricos, para garantir a sua acessibilidade. Parte dos investimentos de programas como PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) deve ser canalizada para adaptar estes espaços e torná-los inclusivos. Por fim, promover o conhecimento e a empatia. “Devemos incentivar uma cultura de compreensão e respeito pelas necessidades das pessoas com deficiência através de campanhas de sensibilização e formação contínua. Estas medidas são fundamentais para combater o capacitismo e promover uma verdadeira inclusão na sociedade”, conclui Jwana Godinho.

A experiência no Rock in Rio Lisboa mostra que, com coragem e recursos, é possível criar eventos acessíveis.