“É muito bom sentir que o meu trabalho faz a diferença”

À frente da direção técnica, do CRASSA, um refúgio fundamental para a fauna selvagem do litoral alentejano, Carolina Nunes é uma bióloga apaixonada pela conservação que lidera uma equipa dedicada a acolher e a tratar centenas de animais por ano, numa luta constante pela preservação da biodiversidade. Fomos conhecer a sua rotina, marcada pelo amor à natureza

A “birdsitter” coruja-do-mato já faz parte da casa. Entrou no CRASSA (Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Santo André) em abril de 2022 ferida numa asa após ter caído do ninho, da qual, mesmo com fisioterapia, nunca recuperou totalmente. Com a asa torta e habituada de tal forma aos humanos, pois já havia estado em cativeiro ilegal, se fosse devolvida ao seu habitat natural este ser-lhe-ia hostil. Atualmente, encontra-se em bem-estar apesar de dada como irrecuperável e apoia na recuperação de outras aves noturnas da mesma espécie que ali dão entrada para se curarem. Com um instinto maternal aguçado, adota as crias órfãs, ajudando-as na sua socialização e ensinando-as a voar e a caçar.

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Cada animal que chega a este centro do litoral alentejano carrega consigo uma história única, repleta de desafios. A da coruja-do-mato é apenas um entre muitos exemplos do impacto e dedicação do CRASSA que, em conjunto com o Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens de Castelo Branco (CERAS) e o Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Montejunto (CRASM), é gerido pela organização ambiental Quercus com a missão de acolher, tratar e devolver ao habitat animais selvagens da nossa fauna autóctone que se encontrem debilitados, feridos ou órfãos, além de desenvolver outras atividades, no âmbito da investigação e educação ambiental. Integra a Rede Nacional de Centros de Recuperação para a Fauna sob responsabilidade do Instituto da Conservação da Natureza e da Floresta (ICNF) e está localizado no Moinho Novo da Galiza, um antigo moinho de água, em Vila Nova de Santo André, concelho de Santiago do Cacém, área incluída na Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha. Esta localização é especialmente interessante ao nível de conservação, uma vez que constitui Área Protegida relevante pelas suas zonas húmidas e avifauna.

Na coordenação destes três centros situados em territórios distintos de Portugal está Carolina Nunes, uma bióloga da conservação que sempre viveu na região de Lisboa até ao dia em que resolveu estudar em Évora, onde havia a licenciatura que queria, Ciência e Tecnologia Animal. No entanto, sendo este curso mais direcionado para a produção animal, optou por se especializar noutra área. “Foi sem dúvida na Biologia da Conservação que acabei por encontrar o meu foco”, revela a responsável, que despertou para o mundo animal e da natureza a ver documentários do canal National Geographic em criança. Com o tempo, essa curiosidade inicial transformou-se numa vontade genuína de aprofundar conhecimentos sobre o tema, até decidir que esta seria a sua vocação para o futuro.

O trabalho de Carolina Nunes no CRASSA é muito variado, de que faz parte a alimentação dos animais e o apoio à enfermaria. No dia da nossa reportagem, os ouriços necessitavam de ser pesados. A tarefa tem de ser rápida para que o animal não se habitue ao contacto humano, o que facilita a posterior libertação no seu meio natural assim que recuperado

Após concluir o mestrado em 2018, regressou a Lisboa e dedicou-se a pequenos trabalhos na área da Biologia, com foco na educação ambiental. No entanto, foi o voluntariado no LxCRAS, em Monsanto, que despertou a sua paixão pelas aves, apesar de inicialmente achar que preferia mamíferos. O apoio da equipa ajudou-a a superar desafios, como a aversão a sangue, e a ganhar competências práticas no cuidado de animais. Percebendo que a vida na capital não lhe agradava, decidiu procurar oportunidades em zonas mais calmas.

Um ano depois, surgiu a oportunidade de voltar ao Alentejo, onde já tinha vivido como estudante, para um estágio profissional no CRASSA que culminou numa contratação, primeiro como técnica e, mais tarde, como diretora técnica, cargo que ocupa atualmente. Por isso, dos três centros que coordena, este é aquele onde passa a maior parte do seu tempo, o qual, nos últimos cinco anos, tem tido um crescimento exponencial em número de animais, de mecenas e de voluntários. “Quando entrei havia um animal em recuperação, agora, vamos fechar o ano com cerca de 500 e mais de 100 voluntários que nos ajudam a cumprir a nossa missão. Temos assistido a uma evolução constante, o que me deixa muito feliz”, acrescenta a coordenadora.

Os animais selvagens feridos que chegam a esta unidade de recuperação são, no geral, encontrados pelas patrulhas do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (GNR), pelos Vigilantes da Natureza (ICNF) ou até pela população local, e provêm sobretudo da região entre Troia e Odemira. “É fundamental apostar na divulgação, na comunicação e na educação ambiental, para que todos saibam como agir ao encontrar um animal selvagem ferido. Ou seja, importa compreender que não devemos ignorar o animal e deixá-lo a morrer, nem levá-lo para casa, pois isso pode ser prejudicial para o próprio animal e até para as pessoas, já que muitos podem transmitir doenças. A atitude certa é contactar imediatamente as autoridades ou um centro de recuperação próximo, para que o animal possa ser resgatado e encaminhado o mais rapidamente possível para os cuidados adequados”, alerta Carolina Nunes.

Unidos pela mesma missão de cuidar e inspirar

O dia a dia da diretora técnica do CRASSA é tudo menos monótono. Nenhum dia é igual a outro. Responsabiliza-se sobretudo pela parte da reabilitação que inclui, também, a educação ambiental, além de dar apoio à enfermaria e à alimentação dos animais: “A filosofia aqui é que toda a gente faz de tudo um pouco, consoante as necessidades, embora dividamos o trabalho em duas grandes áreas, a médico-veterinária, supervisionada pela diretora clínica Andreia Gonçalves, e de reabilitação, sob a minha alçada. É esta mensagem que tentamos passar aos voluntários, muitos deles estudantes universtários das áreas das Ciências ou em estágio, proporcionando-lhes a oportunidade de experimentarem um bocadinho de tudo para que descubram o que realmente gostam e querem fazer na vida”.
No que concerne em concreto à educação ambiental esta organização tem vindo a desenvolver protocolos com as câmaras municipais, escolas e outras instituições públicas e privadas para não só promover sessões de esclarecimento e de libertação de animais na natureza como também atividades várias para crianças e famílias. “Tentamos chegar a um público o mais abrangente possível, quer através das redes sociais e de ações de formação. Basicamente, tentamos aproveitar qualquer oportunidade que seja para divulgar o nosso conhecimento e o nosso trabalho porque de facto pode acontecer a qualquer um de nós encontrar um animal selvagem ferido a precisar de ajuda. Por outro lado, é também nestas ações que muitas vezes conseguimos angariar donativos e voluntários, pelo que são atividades muito interessantes e muito importantes para o centro”, explica ainda.

Entre os hobbies da diretora técnica do CRASSA estão as caminhadas pela Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha, fazendo-se acompanhar dos binóculos, essenciais para uma das suas atividades preferidas, o birdwatching

Para que tudo isto seja possível, o CRASSA conta com alguns apoios, sobretudo vindos de mecenas, como é o caso da Fundação Galp, que são fundamentais para realizar obras e adquirir equipamentos que, segundo esta responsável, fazem muita diferença no tratamento diário dos animais que “são de todos nós. E se todos nós queremos conservar esta biodiversidade todos podemos ajudar de alguma forma. Em 2019, por exemplo, não tínhamos uma sala de internamento nem uma máquina de anestesia. Era muito limitado o número de animais que podíamos receber por não podermos fazer cirurgias. Agora, graças aos mecenas, estamos muito mais à vontade”, garante Carolina que afirma ter muita sorte em poder trabalhar no que ama. Tanto que até os seus hobbies estão ligados à natureza e à preocupação da sua conservação. Gosta de “desanuviar” na praia, ver os lindíssimos pores do sol que o litoral alentejano oferece e quando faz caminhadas pela Reserva não esquece os binóculos que lhe permitem observar aves, além de se dedicar ao voluntariado, quer na Estação Ornitológica Nacional quer junto de animais domésticos, como cães e gatos. “Conseguirmos aliar os nossos hobbies e paixões com o nosso emprego é um privilégio”, assegura, sem deixar escapar aquele brilhozinho nos olhos revelador do entusiasmo e dedicação que coloca no seu trabalho diário. Por isso, conclui a diretora técnica, “espero no futuro continuar a trabalhar nesta área em que acredito, é esta a missão que quero cumprir. Sempre desejei que o meu trabalho tivesse algum tipo de impacto positivo na comunidade e no ambiente. É muito bom sentir que aquilo que faço faz a diferença”.